O que eu fiz...? Quando voltei a mim, estava sentada no chão frio de pedra do salão, com um gosto ferroso conhecido na boca, e um Mikhail de olhos fechados deitado em meu colo. Passei os dedos com cuidado pelo rosto dele, e este abriu um pouco os olhos. Estava visivelmente enfraquecido. E eu o abracei, porque sabia que era a maior responsável por isso.
- Eu sinto muito, Mika... Eu não pude te proteger, e, ainda por cima, eu...
Ele sorriu, amável, apesar da dor que devia sentir, e passou um dedo pelo meu queixo, provavelmente limpando algum resquício do sangue que eu lhe tomara. Eu me curvei, olhando, em seu pescoço, as duas pequenas marcas feitas por minhas presas, e passei devagar a língua por elas, beijando-as em seguida. Elas sumiram, e eu agradeci por esse pequeno dom dado aos de minha espécie: a capacidade de curar as incisões que nós mesmos fazíamos.
Peguei a minha adaga, que estava ensangüentada, no chão, e guardei-a. Roberto, que estivera olhando a estante de livros, voltou com um grande volume.
- Um verdadeiro achado! – dizia ele, que, mesmo cansado pela luta, ainda não perdera o entusiasmo – Mas acho bom irmos agora, precisamos nos tratar e descansar.
Ele estava certo. Estávamos todos machucados e exaustos. Roberto podia ser eufórico algumas vezes, mas ele tinha bom senso; o suficiente para não fazer perguntas naquele momento, pelo menos.
- Consegue levantar, querido? – perguntei a Mikhail, em tom ameno.
- Sim... Só preciso de um pouco de ajuda.
- Andolini, por favor.
- Claro...
Eu e o pesquisador apoiamos, sobre os ombros, um dos braços de Mikhail cada um, e o ajudamos a se erguer. E foi ele quem nos indicou, no fundo da sala, uma caixa coberta por um tecido grosso.
- Preciso ir até lá antes de irmos embora, Sophy...
Nosso trio andou, junto, até a caixa. Em frente à mesma, Roberto tirou o tecido de cima, revelando uma espécie de baú de mármore branco, o mesmo da porta por onde entramos. Havia, encravado na superfície lisa, um símbolo da Rosa-cruz. O historiador tentou abrir, mas a tampa não cedia nem um milímetro. Então, meu noivo abaixou um dos braços, e tocou o engaste. Sendo ele móvel, girou-o algumas vezes para a direita, e tantas outras para a esquerda. Quando estava satisfeito, puxou-o para cima. E a tampa se destravou.
- Mika... Como sabia que era uma trava? E... Como sabia a seqüência certa?
- Eu só senti, Sophy...
Ele levantou a tampa, e, lá dentro, havia uma espada. Uma espada prateada, o punho em prata e mármore branco, com um desenho da Rosa-cruz azul, que, observamos depois, era cravejado de pequeníssimas safiras. A lâmina, não muito grossa, continha algumas inscrições gravadas, provavelmente na mesma língua estranha sibilada pelos minions. Havia também uma bainha para ela, de algum metal, mas encoberta por esmalte de branco tão puro quando o mármore do punho. Mikhail guardou a espada na bainha, e a envolveu no veludo preto que estava com ela dentro da caixa, pegando-a para si.
Em seguida, fomos até uma pequena porta, que ficava perto da estante de livros. Meu noivo estendeu para mim uma chave dourada, e eu a usei para abrir tal porta, e, enquanto o novo corredor se revelava, Andolini pegou uma tocha que havia na parede ao lado, pegando as chamas da sala para iluminar o caminho, como feito antes. Seguimos por aquela abertura, fechando a porta ao passarmos.
Não lembro quanto tempo demorou para chegarmos ao final do túnel, mas foi uma caminhada relativamente longa. Estávamos subindo indefinidamente, até que, enfim, avistamos os primeiros raios de um sol vespertino.
Saímos por uma espécie de caverna encoberta por hera, e, ao olharmos ao redor, nos demos conta de que estávamos em uma área isolada, fora da cidade, mas não muito distante da mesma. Andamos até encontrar a estrada principal, onde, por sorte, logo tomamos um táxi – não antes de mostrarmos nossos documentos a um relutante e desconfiado taxista, explicando que estávamos fazendo trilhas e nos perdemos. Ele deve ter aceitado a desculpa, ou pelo menos engolido nossa presença, frente à nota de valor gordo que Andolini gentilmente lhe estendeu, falando algo em italiano.
Fomos deixados rapidamente no hotel, e logo nos encaminhamos para dentro. Apesar do resquício de luz do poente, já passava das vinte e uma horas, de forma que combinamos de nos encontrarmos e decidir o que faríamos a seguir pela manhã. Então, Roberto foi para seu quarto, e eu e Mikhail fomos para o nosso. Fui direto até minha mala, e peguei um estojo com itens de primeiros socorros.
- Mika, pode ir. Tome um bom banho, e lave bem os ferimentos. Eu vou cuidar deles.
Ele apenas balançou a cabeça, em sinal afirmativo, e entrou no banheiro. Enquanto isso dispus, sobre a cama, os materiais de que precisaria: ataduras, gaze, um vidro de antisséptico líquido, algodão, esparadrapo, e uma tesoura. Depois, fui até a pia do lavabo, onde lavei as mãos, e esterilizei-as com um pouco de álcool.
Estava pegando as luvas, quando Mikhail, em seu roupão de banho, veio a mim, os cabelos ainda molhados. Eu sorri, porque ele estava meio sem graça por tudo aquilo, e pedi que sentasse.
- Agora... Mostre-me onde dói...
Meu noivo despiu-se até a cintura, mostrando alguns arranhões nas costas, que, apesar de não serem tão profundos, eram bastante longos. De luvas já postas, peguei um pouco de algodão, e, embebendo-o em antisséptico, passei com cuidado sobre os cortes. Coloquei pedaços de gaze sobre os mesmos, prendendo-os com esparadrapos, e, em pouco tempo, todos os ferimentos já estavam devidamente tratados. Ele vestiu novamente a parte de cima do roupão, e me olhou nos olhos.
- Obrigado. Mas Sophy... Deveria se cuidar também. Por que não vai se lavar? Eu... Acho que posso cuidar dos seus cortes também.
- Bobo... – eu sorri, e beijei seu rosto – Eu posso ficar bem sozinha. Me curo mais rápido que vocês, lembra...? Vou ficar bem. Mas de fato, preciso de um banho. E vou resolver isso agora mesmo.
Levantei dali, e, pegando meu próprio roupão de banho e uma toalha, fui ao banheiro. Despi-me com certo receio. Havia um ferimento profundo em meu ombro, e, apesar de não doer tanto, ainda não havia fechado, e essa velocidade anormalmente baixa de cura me preocupava. Mas ficaria tudo bem. Ele não precisava se preocupar mais ainda... Certamente que não.
Então, liguei a torneira, e entrei no chuveiro, sentindo a água um pouco mais morna que o usual em minha cabeça, em meu ombro, em meus pés. E aí, tudo ficou escuro.
sábado, 3 de outubro de 2009
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